mercredi 15 avril 2009

O que foi Amália na minha vida...


Cresci com a voz da Amália...

Tudo começou em Lisboa, em 1940, na Rua do Arco do Carvalhão, quando eu ia sentar-me na bordinha do Chafariz ali mesmo encostado ao Aqueduto das Águas Livres, a ver a Ponte Duarte Pacheco emergir...
Mesmo por detrás da Bica havia uma sombria tasca com o seu velho rádio empoleirado numa das paredes, sempre a tocar. Foi, sentado nesse chafariz, escutando essa rádio, que pela primeira vez ouvi essa Divina Voz. Fiquei logo escravizado!
A primeira vez que a vi foi no Café Chico, na Ericeira, onde eu trabalhava então como criado de mesa - quando ela entrou com os seus guitarristas, para tomar uma cerveja e fumar um cigarro. Quando eles sairam, agarrei naquele copo onde ela tinha deixado a marca do seu bâton, que guardei durante muitos anos. Perdi esse copo quando "O Meu Tesouro" - a tal maleca - foi engolido pelo mar revolto da Mancha.

Vi-a pela primeira vez em palco em Tel Aviv, depois Haifa, depois Jerusalem...
Anos mais tarde fui vê-la ao Olymmpia de Paris, e mais tarde ainda, no Theatre de la Ville, quando ela me autografou um dos seus discos que eu tinha comprado no hall de entrada.

Ela estava linda!

Nas minhas funções de jornalista, na Rádio Alfa de Paris, entrevistei-a seis vezes. A primeira vez que o fiz e a vi na minha frente em pessoa, o meu coração pulsou forte, como se fosse estoirar! Entre nós imediatamente a corrente passou. Quando lhe mostrei o meu poema "O Aprendiz", que estava publicado no jornal "O Encontro", que eu tinha debaixo do braço, ela, depois de o ler atentamente durante alguns minutos, tirou os óculos e, olhando-me fixamente nos olhos, disse:

-Gostava de cantar isto! Identifico-me muito com o que você escreve!

As outras cinco vezes que estivemos juntos, sempre nos hotéis onde ela se alojava em Paris, foram consolidando uma apreciação mútua. Sobretudo depois de lhe ter oferecido o meu livro de poemas "Sombras"! Pressenti que uma grande amizade, pouco a pouco, tinha despontado.
A última vez que a vi, depois de um dos seus espectáculos, quando ela veio para dar autógrafos, ela dirige-se a mim e diz-me:

- Rogério, escolhi dois dos seus poemas para o meu "último" disco!

Tenho uma sagrada foto desse momento sublime, que guardo como uma relíquia!

***

Depois da sua morte, numa festa da Alfa - uma noite de fados - estava presente o Jorge Fernando, o homem que tinha feito as músicas para esse seu útimo disco.

Perguntei ao Jorge se tinham gravado esses dois poemas, mas ele não tinha a certeza, pois que nesse dia tinham gravado 30 poemas de vários poetas.

- A Amália disse-me que tinha escolhido dois dos meus poemas para o seu último disco. Talvez ela dissesse isso a todos os poetas que lhe faziam poemas... Insinuei...

- Não, meu amigo, quando a Amália dizia que gostava de cantar um poeta, ela sempre o fazia!

Foi a sua resposta!

***

O APRENDIZ

No ventre de minha mãe

meus lábios aprendi a mover.

Seu sagrado ventre rasguei

abri a boca e clamei

o direito de viver!

Rompi seu ventre sagrado

e deitei-me depois a seu lado

para do Mundo me esconder!


Nos braços de minha mãe

seu magro seio aprendi

na minha boca a reter.

Suguei seu leite seu sangue

e descobri um país exangue

onde aprendi a crescer!


Em casa duma vizinha

encontrei o que não tinha

algo que pedira em vão!

Ela pareceu não escutar

não o tinha para me dar

loiro trigo doirado pão!


Para a escola da minha rua

lá fui descalço cabeça nua

para tudo assim aprender.

Levava na minha sacola

aquela sensação de esmola

de quem olha sem me ver!


Diante duma igreja passei

baixei os olhos e entrei.

Dei com Cristo crucificado!

A seus pés ajoelhei

o amor do mundo supliquei

mas Cristo ficou calado!


Assim segui pela vida

levando a boca escondida

a minha boca calei!

Dessa boca fiz um forte

couracei-me no meu porte

e nada mais mendiguei!


Nos olhos de minha mãe

Silêncios aprendi a colher

Atravessei seu olhar fechado

E nele me quedei enleado

Até a vida me perder!

Cobri seu rosto gelado

E deitei-me depois a seu lado

Para do mundo me esquecer!


Rogério do Carmo

Paris, 5 de Julho de 1989





O "Aprendiz" na voz de Paco de Sousa

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