Nas minhas funções de jornalista, na Rádio Alfa de Paris, entrevistei-a seis vezes. A primeira vez que o fiz e a vi na minha frente em pessoa, o meu coração pulsou forte, como se fosse estoirar! Entre nós imediatamente a corrente passou. Quando lhe mostrei o meu poema "O Aprendiz", que estava publicado no jornal "O Encontro", que eu tinha debaixo do braço, ela, depois de o ler atentamente durante alguns minutos, tirou os óculos e, olhando-me fixamente nos olhos, disse:
-Gostava de cantar isto! Identifico-me muito com o que você escreve!
As outras cinco vezes que estivemos juntos, sempre nos hotéis onde ela se alojava em Paris, foram consolidando uma apreciação mútua. Sobretudo depois de lhe ter oferecido o meu livro de poemas "Sombras"! Pressenti que uma grande amizade, pouco a pouco, tinha despontado.
A última vez que a vi, depois de um dos seus espectáculos, quando ela veio para dar autógrafos, ela dirige-se a mim e diz-me:
- Rogério, escolhi dois dos seus poemas para o meu "último" disco!
Tenho uma sagrada foto desse momento sublime, que guardo como uma relíquia!
***
Depois da sua morte, numa festa da Alfa - uma noite de fados - estava presente o Jorge Fernando, o homem que tinha feito as músicas para esse seu útimo disco.
Perguntei ao Jorge se tinham gravado esses dois poemas, mas ele não tinha a certeza, pois que nesse dia tinham gravado 30 poemas de vários poetas.
- A Amália disse-me que tinha escolhido dois dos meus poemas para o seu último disco. Talvez ela dissesse isso a todos os poetas que lhe faziam poemas... Insinuei...
- Não, meu amigo, quando a Amália dizia que gostava de cantar um poeta, ela sempre o fazia!
Foi a sua resposta!
***
O APRENDIZ
No ventre de minha mãe
meus lábios aprendi a mover.
Seu sagrado ventre rasguei
abri a boca e clamei
o direito de viver!
Rompi seu ventre sagrado
e deitei-me depois a seu lado
para do Mundo me esconder!
Nos braços de minha mãe
seu magro seio aprendi
na minha boca a reter.
Suguei seu leite seu sangue
e descobri um país exangue
onde aprendi a crescer!
Em casa duma vizinha
encontrei o que não tinha
algo que pedira em vão!
Ela pareceu não escutar
não o tinha para me dar
loiro trigo doirado pão!
Para a escola da minha rua
lá fui descalço cabeça nua
para tudo assim aprender.
Levava na minha sacola
aquela sensação de esmola
de quem olha sem me ver!
Diante duma igreja passei
baixei os olhos e entrei.
Dei com Cristo crucificado!
A seus pés ajoelhei
o amor do mundo supliquei
mas Cristo ficou calado!
Assim segui pela vida
levando a boca escondida
a minha boca calei!
Dessa boca fiz um forte
couracei-me no meu porte
e nada mais mendiguei!
Nos olhos de minha mãe
Silêncios aprendi a colher
Atravessei seu olhar fechado
E nele me quedei enleado
Até a vida me perder!
Cobri seu rosto gelado
E deitei-me depois a seu lado
Para do mundo me esquecer!
Rogério do Carmo
Paris, 5 de Julho de 1989
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