mardi 26 mai 2009

O que foi Amália na minha vida...

Amália? Quem foi Amália na minha vida?

Ao longo dos anos, cresci ao som da sua inigualável Voz!

A descoberta da Voz...


Em 1940 - tinha eu 5 anos - vivia na rua do Arco do Carvalhão em Lisboa. Costumava ir sentar-me na borda do chafariz, ali mesmo à beirinha do arco, para ouvir a água a chapinhar ne ver aqueles homens apassarados a construírem a ponte Duarte Pacheco. Recordo o dia em que os vi aplicar a lage com o zero, da data da sua inauguração em 1940!Uma manhã, sentadinho à beira do meu chafariz, ouvi uma Voz que me vinha da telefonia duma taberna logo ali por detrás. Essa voz imediatamente despertou em mim uma particular atenção. Era como se ela me viesse do céu, uma dádiva de Deus. Estava atento a ouvir essa Voz que me seguiria todo ao longo da minha longa vida quando, de repente, ouço uma voz rouca de homem vociferando:-"Calem a boca, caraças, deixem-me ouvir a Amália!"Isto foi em 1940, Amália ainda não tinha gravado discos. Penso que cantava em directo da Emissora Nacional ou de alguma fita gravada. Uma coisa era certa: Já em 1940, em Lisboa, ela era já a Amália! Só alguns anos mais tarde vim a descobrir que ela se chamava Amália Rodrigues!A descoberta de Amália Rodrigues num filme...Em 1947, tinha eu 12 anos, fui ver o seu primeiro filme, Capas Negras. Fiquei imediatamente apaixonado por ela! A sua linda cara, a sua linda voz!

Na telefonia ouvia-se constantemente a sua Voz e os seus lindos fados e nos Discos Pedidos ouvia-se sempre Amália."Capas Negras"- com Amália Rodrigues e Alberto Ribeir
Anos mais tarde, trabalhava eu na Ericeira, no Café CHICO quando, inesperadamente, Amália entra com os seus guitarristas e sentam-se a uma mesa. Era uma das minhas mesas!
Fui a correr perguntar que queriam tomar!
Pediram-me quatro cervejas.Ela acomodava a sua vasta negra cabeleira, caindo-lhe pelas costas abaixoE aqueles olhos como noite de luar aquelas suas mãos muito brancas e finas E aquela boca muito vermelhaFiquei louco!

Quando saíram, acompanhei-os até à porta e quando ela passava as mulheres benziam-se, chamando-lhe Nossa Senhora do Fado. Depois vim a saber que eles estavam acampados na Foz do Lizandro, ali mesmo a dois passos.
Quando levantei a mesa peguei no copo donde Amália tinha bebido. No rebordo desse copo ficou a marca do baton dos seus lábios. Esse copo guardei-o religiosamente.
Acartei-o ao longo da minha vida, até esse dia da travessia do Canal da Mancha, quando o mar revolto enguliu a minha lancheira - o meu tesouro - onde guardava tantas coisas que me eram tão preciosas, sobretudo aquele copo!O tempo foi passando... e eu sempre a ouvir a Amália. Ia até à Rua do Carmo ouvi-la numa loja de discos onde a ouviamos constantemente. Eu morava então na Rua da Prata, que não era nada longe.

Em 1960 parti para Israel e depois de quase dois anos numa escola de hotelaria, fui fazer um estágio de três meses no King David Hotel em Jerusalem e depois mais três meses no Hotel Ginton, em Tvéria, ali à beira do lago Kineret. Após estes dois estágios recebi o meu diploma e comecei a minha carreira como profissional.

Mesmo em Eilat a voz de Amália não se esquecia...


O meu primeiro emprego foi no Queen of Sheeba Hotel em Eilat, esse maravilhoso Paraíso à beira do Mar Vermelho. Isto passou-se em 1963, quando John Kennedy foi assassinado.
Eu compartilhava um apartamento no Sing-Sing com um colega de trabalho que eu muito amava. Um dia, quando fui ao barbeiro cortar o cabelo, passei por uma loja de discos e vi um Long-Play da Amália na vitrina. Entrei e comprei o disco. Depois realizei que não tinha gira discos para o tocar e comprei também o dito.
Chegado a casa liguei o gira-discos e pus o disco a tocar e... milagre! Eu estava a ouvir a minha Voz ali em Eilat, a milhares de quilómetros de Lisboa. Ouvi esse disco algumas cinco vezes de seguida. Depois, todos os dias, Amália cantava só para mim. Só para mim? Erro! Também cantava para os vizinhos! Uma noite uma vizinha veio bater-me à porta e disse:
-“Adora a Amália Rodrigues, mas não todos os dias, o dia inteiro! É demais!”

Um magnífico concerto de Amália em Tel Aviv que marcou Rogério...



Mais tarde, em Tel Aviv, apanhei o autocarro para ir para casa e, senrtado ao pé da janela, vi um grande cartaz muito colorido colado numa parede da cidade que rezava asim:

“Amália Rodrigues – três concertos – Sábado – Domingo e Segunda, às 21 horas, no Teatro Mograbi”

Saltei do autocarro e fui a correr comprar um bilhete para Domingo, pois que estava livre nessa noite.
Chegado esse tão desejado domingo, vesti-me melhor do que o habitual para ir ao Teatro Mograbi. Mal me sentei comecei logo a ouvir as guitarras portuguesas e a minha alma encheu-se dum saudosista prazer infinito.
Momentos depois as luzes apagam-se. O pano sobe... e... lá estavam os três guitarristas que começaram com uma bela desgarrada. Quando acabaram o público aplaudiu e quando uma voz anuncia: “Rabotai u’gvirotai” – “Ladies and Gentlemen” - Senhoras e Senhores” – Amália Rodrigues!


Amália entra como uma raínha e a sala levantou-se para uma salva de palmas para a acolher. Fiquei espantado! Nem sequer sabia que a Amália já tinha estado várias vezes a cantar em Israel e que ela era já uma Deusa para esse público!
O tempo foi passando e depois fui vê-la em Jerusalem. Sempre o mesmo sucesso!

Anos mais tarde, Hella, uma amiga minha que tinha feito a escola hoteleira comigo - que trabalhava e morava então em Haifa - telefona-me para eu ir passar um fim de semana com ela. Cheguei lá Shabbat para passar uma noite e depois regressar a Tel Aviv no domingo.

Shabbat à noite, Hella põe a mesa e serve um dos seus bons jantares bem “kosher”.
Depois do jantar ela espreguiça-se, levanta-se, e diz:
-“Não me apetece mesmo nada ir lavar a loiça. Olha, vamos saír, vamos dar uma volta, está uma noite tão bonita!”
Todas as noites em Israel são bonitas... sempre um céu crivado de estrelas e a doce brisa que nos vem do mar...
Saímos e fomos a pé para, segundo a Hella, ir a uma esplanada tomar um bom café. O que fizémos.
Em frente dessa Esplanada havia um teatro e, sob os holofotes, um grande cartaz da Amália. Dei um grito e disse:
-“Raios! Vamos comprar bilhetes! Vamos ver a Amália... Conheces a Amália?”
-“Não – diz-me ela! Nem quero conhecer! De resto já está a lotação esgotada! Vamos mas para casa, estou estafada!”


Levantámo-nos para ir para casa e passámos em frente desse teatro. Parei para ver as fotos da Amália nas vitrinas. Ela empurra-me até à entrada e saca dois bilhetes da sua bolsa e diz-me:
- “Yélá, tipeche, kanesse!” = “Entra, estúpido”!


Claro que entrei. Caí-lhe nos braços e dei-lhe um grande beijo na face. Mal nos sentámos as luzes apagaram-se e o espectáculo começou: Guitarradas e logo a seguir Amália caminha como uma raínha para o centro do palco e diz: Shalom! E começa a cantar “Foi Deus”! A sala veio abaixo com aplauso!
Amália era continuamente aplaudida e, para meu grande espanto, Hella põe-se aos gritos:
-“Casa Portuguesa - Casa Portuguesa!”
Amália pensou que era uma portuguesa que reclamava essa cantiga e diz:
-“Para esta senhora, “Casa Portuguesa”! Hella dava pulos de contente e todas as cadeiras dessa fila estremeceram!




A vida de Rogério continuava.... a presença de Amália na sua vida era constante e inesquecível....


Certo dia, depois de dois julgamentos no Tribunal de Tel Aviv, por estar ilegal no país, por não ser judeu, ao fim do primeiro julgamento o juiz diz-me que eu tinha que deixar o país dentro de três meses. Levantei-me e disse ao juiz: “Nasci em Portugal por acaso, morrerei em Israel por minha própria decisão!” Esta frase fez os cabeçalhos de todos os jornais israelitas na manhã seguinte!
Quando do segundo julgamento, a mesma coisa aconteceu: “Senhor Carmo, tem três meses para deixar o país!” Novamente me levanto e grito: “Se o senhor Juiz quer que eu deixe Israel, terá de me agarrar pelos colarinhos, pôr-me em cima dum barco em Haifa, e eu voltarei a nado!” Novos cabeçalhos para todos os jornais!
Depois destes julgamentos, os meus patrões no Hotel Hod em Herzelia, começaram a ser também convocados pelas autoridades pelo facto de eles darem trabalho a um “goy”!

Deixei Israel e fui dar uma volta pela Europa. Viagem que terminou em Londres. Em Londres, depois de alguns problemas burocráticos, arranjei trabalho no Hilton Park Lane e instalei-me em Chalk Farm. Sempre que ia ao East End fazer compras –a velha mania de me aperaltar- comprava sempre discos da Amália mas, em 5 anos, ela nunca foi cantar a essa cidade.
Depois de Londres sigo para Paris e aí, novamente, uma amiga minha - a Raymonde - prega-me a mesma partida: levou-me até Chatelet para tomarmos um café no Sarah Bernahardt e, catrapus! No Theatre de la Ville, ali mesmo ao lado: Amália Rodrigues! Novamente lotação esgotada e Raymonde não tinha comprado bilhetes. Novamente sou empurrado até à entrada e os bilhetes aparecem como por milagre! Outra noite inesquecível. Amália estava linda e cantou como nunca tinha cantado. A sua voz estava mais grave e mais quente.


Depois vieram tempos difíceis e, à beira do suicídio, agarro em todos os meus poemas que tinha escrito ao longo da minha vida, folhas amarelecidas pelos anos e, para não deitar todos os meus poemas ao lixo, envio toda aquela papelada num grande envelope endereçado a: Amália Rodrigues – Rua de São Bento – Lisboa – Portugal. Os poemas lá seguiram e eu lá segui também a viver a minha vida cheia de frustrações.

Muitos anos mais tarde, em Lisboa, estava eu a ouvir a rádio quando Ary dos Santos começa a dizer um poema onde ele fala de muitos poetas seus contenporâneos e, entre todos esses poetas, ele diz “e ao Rogério que eu nunca disse”! Eu sabia lá quem era esse Rogério...

Depois, com alguns amigos, fundámos a Rádio Alfa de Paris e comecei a trabalhar o melhor que podia. Um dia vejo anunciado num jornal um espectáculo com Amália no Olympia. Telefono ao Olympia e eles dão-me a morada do hotel onde ela se costumava alojar.

Telefono a esse hotel e peço para falar com a Amália. Quem atendeu o telefone foi o seu empresário, Jean-Jacques Lafaye. Obtive uma entrevista com ela. A minha primeira entrevista com a minha idolatrada Amália!

Encho-me de coragem, agarro no meu gravador e vou com o fotógrafo entrevistar a Amália ao Hotel Eduardo VII na avenida da Ópera.



Esperámos algum tempo... depois ela desceu ao hall e veio ao nosso encontro. Como sempre, estava linda!
O fotógrafo fez algumas fotos e eu gravei a entrevista e foi tudo!
Ela ia cantar ao Olympia e eu lá fui eu uma vez mais ao Olympia escutá-la.

Sempre que a Amália vinha cantar a Paris eu ia entrevistá-la.
Sempre em hoteis diferentes.
Pouco a pouco começámos uma pequena amizade recíproca.
Um dia eu tinha o jornal “O Encontro” comigo e nesse jornal um poema meu:
-“O Aprendiz”. Mostrei-lhe. Ela pôs os áculos e leu em silêncio.
Depois diz-me: “Eu gostava de cantar isto... mas cortaria alguns versos”. Começou a ler em voz alta como ela o cantaria.
Meu Deus! O meu poema na sua voz era um hino à minha mãe. Parece que também à sua!
Antes de nos despedirmos ela pergunta: “Não me diga que você é o Rogério que, há anos, me enviou todos os seus poemas para minha casa?” Anuí!
Ela então conta-me que tinha lido tudo, que se identificava muito com o que eu escrevia, que tinha dado tudo ao Ary dos Santos para ele fazer conhecer o meu trabalho aos outros poetas de Lisboa. Daí talvez o tal “Rogério que eu nunca disse”...

Depois de ter editado o meu primeiro livro de poemas, Sombras, envio-lhe uma cópia para a Rua de São Bento. Quando ela volta a Paris para cantar, de novo a vou entrevistar e, como sempre, depois de ter acabado a gravação, ficávamos na conversa até mais tarde. Nessa tarde ela diz-me que tinha lido um fado que eu lhe tinha escrito, “O Inverno da Vida” e que gostaria de o cantar. Eu disse-lhe que se ela o fizesse eu seria o homem mais rico deste mundo.

Em outro dos seus espectáculos em Argenteuil, depois do espectáculo, ela vem ao hall para assinar autógrafos. Ela aproxima-se de mim, põe a sua linda mão no meu trémulo ombre e diz-me: “Rogério, escolhi dois dos seus poemas para o meu último disco”!
Tenho uma foto desse sublime momento da minha vida!

A última vez que entrevistei a Amália, quando ela voltou ao Olympia, durante a gravação, como eram os seus 50 anos de carreira, perguntei-lhe quando é que ela deixaria de cantar. A sua resposta foi:

-“Enquanto houver gente que venha aos espectáculos da Amália, eu também venho!”

Quando lhe perguntei quais os seus planos de futuro ela responde: “O Futuro não existe!” Então falemos do passado! “O Passado nunca existiu!” Então falemos do presente... “O Presente são apenas aqueles momentos que continuamente nos caem do céu e que mal chegam logo morrem!”

Quando a Amália nos deixou, chorei como uma criança que perdera o caminho numa imensa floresta povoada de sanguinários predadores, sem saber como encontrar a saída!
Na festa dos 20 nos da Alfa vou à Sala Vasco da Gama para celebrar com todos esse dia tão especial.
Nessa noite haviam fados e estava lá a cantar o Jorge Fernando, o homem que fez as músicas para o último disco da Amália. Perguntei-lhe se ela tinha gravado “O Aprendiz” e ele diz-me que lhe parecia que sim, mas não tinha a certeza. Como resposta ao Jorge disse-lhe que ela me tinha dito que ela gostaria de cantar o meu poema mas que, se calhar ela dizia isso a todos os poetas que lhe faziam poemas...

O Jorge Fernando põe uma das suas mãos sobre um dos meus ombros e declara:

-“Quando a Amália dizia que gostaria de cantar fosse o que fosse, ela sempre o fazia!”

******

Em 1989, depois de a ter entrevistado algumas vezes, fiz-lhe um poema que nunca lhe mostrei, pois temi um mutuo embraço, pois que era nitidamente uma declaração de amor! Claro que ela nunca o poderia cantar, mas, mesmo assim, bem gostaria de o ouvir cantado por fadista que dela gostasse.

A NORA
(à Amália)

Vai de roda vai de roda
vai de roda sem parar
e esta roda que mal roda
um dia hás-de cantar
como os fados que cantaste
e no peito me deixaste
o desejo de voltar
e este meu sem eira nem beira
perto da tua cabeceiura
um dia há-de estacar.

Sobre este mar encapelado
meu barquinho naufragadao
numa praia rebatida
como ao soar da partida
uma praia portuguesa
com pão e vinho sobre a mesa
um dia há-de atracar
e a todas as portas que bati
e os comboios que perdi
um dia hei-de cantar
nesta minha maneira de chorar.

E eu sentado na praia
a contar as ondas do mar
e naquelas noites de bruma
o mar em branca espuma
minhas lágrimas secará
e aquele meu sonho renegado
neste fado será cantado
e o mar comigo chorará.

E chora o mar e chora o vento
este meu último lamento
nessa voz que me foi na vida
a minha única guarida
chora voz essa voz só tua
que faça sol ou faça lua
se ainda lavo no rio
e na rua hei-de ficar
chora chora meu amor
antes que o mar se vá embora
chora chora
até que eu deixe de chorar
e este amor que não importa
não bata mais à tua porta
chora chora meu amor
que minha alma já está morta.

Vai de roda vai de roda
que esta roda já cansou
chora chora meu amor
que a minha nora já secou.

Rogério do Carmo
Paris, 1989

3 commentaires:

  1. Rogério...

    Aplausos... Fascinante, esta historia de vida.
    Imagina só que trabalhei durante 12 horas de noite e ainda estou a ler o que escreves e já á 2 horas...
    se nao é paixão então é amor (Risos)
    Imagino todas as historias que ainda tens para escrever amigo.
    Espero que penses sinceramente a escrever as tuas memorias,eu quero ler esse livro...
    mas para isso tens de te por ao trabalho, bora lá.
    Adorei a forma como descreveste este romance com a nossa Grande e Maravilhosa Inesquecivel Amalia.
    bj

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  2. Atão por andas tu? Há anos que não sabemos nada de ti!

    Apita!

    Rogério

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